Publicado em 13 de fevereiro de 2025
Conjur

O ITCMD na doação de quotas sociais

O Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação tem ganhado destaque no noticiário econômico. Não é por menos, afinal, em um cenário em que as atividades empresariais sofrem com circunstâncias econômicas adversas, é natural que alguns estados venham a amargar queda na arrecadação do ICMS, ou outros que, com mais sorte, verifiquem apenas a estabilização de seus números, mas sem aumentos reais significativos. A alternativa para fazer frente às despesas públicas, que só crescem, é usar o ITCMD para aumentar o bolo da arrecadação.

Essa foi a solução encontrada pelo estado de São Paulo, que lançou variadas ações para incrementar a fiscalização do ITCMD, tal como a operação vaisyas, cujo objetivo é verificar a regularidade dos recolhimentos do imposto nos casos de doação de quotas sociais. O seu resultado foi a lavratura de centenas de autos de infração contra os contribuintes paulistas.

Recentemente, tive a oportunidade de participar do julgamento de um desses casos no Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo, o querido TIT/SP. As discussões travadas foram muito interessantes, vale a pena apresentar a vocês.

O caso

De acordo com os dados do processo, um dos acusados doou aos seus filhos a participação societária que detinha em uma determinada empresa. A controvérsia estava nas deliberações tomadas pelos sócios dias antes da doação. Em suma, a empresa contava com lucros de exercícios anteriores, mas não havia recursos em caixa para pagar dividendos aos sócios. Por isso, transferiram os valores da conta “reserva de lucros”, em patrimônio líquido, para a conta de dividendos a pagar, em passivo.

O efeito direto dos lançamentos foi a redução do patrimônio líquido da empresa e, como consequência, da base de cálculo do ITCMD, que é justamente o valor patrimonial das quotas sociais, conforme artigo 14, §3º, da Lei nº 10.705/00 [1]. Foi esse ponto o âmago da acusação fiscal, que exigia o ITCMD complementar sobre os valores que foram transferidos da conta de reserva de lucros para a conta de dividendos a pagar.

 

Segundo o entendimento fazendário, uma vez que a empresa não detinha recursos suficientes para pagar dividendos aos sócios quotistas, jamais lhe seria possível, consoante a legislação, reclassificá-los como “dividendos a pagar” em passivo. Segundo essa perspectiva, haveria obrigatoriedade de manutenção dos valores em “reserva de lucros”, que somente poderiam ser revertidos quando houvesse efetivos recursos disponíveis ao pagamento de dividendos.

Assim, concluiu o Fisco paulista que o manejo contábil levado a cabo teve como único objetivo a redução do imposto a pagar, havendo aí a deflagração da incidência da norma geral antielisiva prevista no artigo 116, parágrafo único do CTN, e artigo 84-A da Lei nº 6.374/1989 (fls. 30/32).

Apresentada impugnação e tramitado o processo, veio a decisão de primeira instância. Além de acolher as razões contidas no auto de infração, acrescentou que o fato de os dividendos deliberados não terem sido pagos dentro do exercício social seria outro elemento a descaracterizar o procedimento adotado pela empresa, pois haveria infringência ao artigo 205, § 3º da Lei 6.404/76 [2].

A decisão

Os debates giraram em torno de haver, ou não, a possibilidade de redução do patrimônio líquido pela retirada, da conta de reserva de lucros, dos valores que lá estavam registrados para pagamento de dividendos aos sócios, para registro em passivo, como uma obrigação. Mais ainda, se haveria essa possibilidade de lançamento em passivo mesmo se sabendo que não havia recursos em caixa para pagar os dividendos.

Em meu voto, entendi que a baixa da reserva de lucros para passivo não era apenas possível, mas em verdade a única alternativa válida para o contexto.

É que, de acordo com o ICPC 08 (R1), emitido pelo Comitê de Pronunciamentos Contáveis (CPC), caso os dividendos intermediários [3] não sejam pagos pela empresa aos sócios, eles devem ser lançados como passivo da entidade, porque passam a constituir uma provisão líquida e certa e, portanto, uma obrigação. O entendimento ICPC 08 (R1) fincou base nos dizeres do item 14 do Pronunciamento CPC 25, que versa sobre provisões, passivos e ativos contingentes. Vejamos:

 

17. O Pronunciamento Técnico CPC 25 – Provisões, Passivos Contingentes e Ativos Contingentes – estabelece que um passivo deve ser reconhecido quando três condicionantes forem observadas. Assim determina o Pronunciamento Técnico CPC 25, em seu item 14:

 “14. Uma provisão deve ser reconhecida quando:

(a) a entidade tem uma obrigação presente (legal ou não formalizada) como resultado de evento passado;

 (b) seja provável que será necessária uma saída de recursos que incorporam benefícios econômicos para liquidar a obrigação; e

(c) possa ser feita uma estimativa confiável do valor da obrigação

Se essas condições não forem satisfeitas, nenhuma provisão deve ser reconhecida.”

18. Pelos itens precedentes, os dividendos intermediários, declarados por decisão dos órgãos da administração de acordo com as formalidades previstas no estatuto social e na Lei, são deliberações finais e enquadram-se no item 14 do Pronunciamento Técnico CPC 25; portanto, se não pagos devem figurar no passivo da entidade como uma obrigação.

Esses requisitos estavam preenchidos no caso em julgamento, porque os dividendos devidos eram relativos a lucros anteriores (obrigação presente de um evento passado), seu valor, por sua vez, foi estimado com confiança, tanto que não estavam em discussão, e era provável a saída de caixa para satisfação da obrigação relativa ao pagamento dos dividendos.

E aqui um ponto importante. A norma contábil não requer que se confirme, concretamente, saídas de caixa e comprovação efetiva da quitação dos dividendos. Muito ao contrário, o ICPC 08 (R1) c/c Pronunciamento CPC 25 dão conta de que a mera probabilidade de saída de caixa já é suficiente para que os dividendos não pagos sejam revertidos para passivo.

Mas não é só. Também em decorrência de práticas contábeis é que o lançamento do passivo “dividendos a pagar” se deu na rubrica a longo prazo. Lançamentos a longo prazo denotam ativos ou passivos que serão realizados em exercícios posteriores àqueles dos próprios lançamentos. Por exemplo, uma construtora/incorporadora que recebe recursos decorrentes da alienação de unidades imobiliárias ainda em construção deverá registrar o evento como passivo a longo prazo, consistente em sua obrigação de entregar a referida unidade ao adquirente ao final da obra — o que provavelmente ocorrerá em anos seguintes, isto é, em anos posteriores àquele que recebeu os recursos em caixa.

 

Ora, de acordo com os dados do caso, os dividendos se referiam aos lucros de exercícios anteriores e o seu pagamento, por sua vez, somente foi realizado em exercícios posteriores àquele em que as reservas de lucros foram baixadas como despesas. Logo, se o cumprimento da obrigação transcendia o exercício de seu registro contábil como despesa, só poderia ser mesmo reconhecida como despesa a longo prazo. Não havendo, portanto, qualquer ilicitude no pagamento de dividendos em exercícios posteriores ao lançamento contábil da obrigação da empresa, a conclusão que se chegou foi a de que as considerações colocadas pelo órgão julgador de primeira instância eram infundadas e inconsistentes.

Diante desses elementos ficou uma conclusão cristalina: o único procedimento lícito que a empresa poderia adotar era justamente a reversão da reserva de lucros para passivo. O efeito natural e consequente dessa reclassificação foi a redução do patrimônio líquido e, logo, da base de incidência do ITCMD. Mas não houve nenhuma ilicitude no procedimento. Pelo contrário, não fossem feitos os ajustes, o Fisco paulista teria recebido imposto indevido.

Olhos atentos

O ITCMD ainda não é um imposto exaustivamente estudado e analisado, como o ICMS, PIS, Cofins, IRPJ e CSLL. Mas deveria. As fiscalizações tendem a aumentar cada vez mais, porque o imposto tem demonstrado uma robusta força arrecadatória. Além disso, doravante assistiremos ao aumento de suas alíquotas após a aprovação da reforma tributária.

Não há dúvidas de que as administrações fazendárias ficarão ainda mais seduzidas para criar métodos mais eficazes de fiscalização e cobrança. Saber os limites da licitude dos lançamentos passou a ser mais essencial do que nunca.

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